segunda-feira, 15 de agosto de 2011

enquanto pulsar

Haverá sempre um rosto, um gosto, um  encosto, uma imaginação da Ariosto. E as coisas impossíveis perturbando as coisas cabíveis. Haverá sempre um jeito. Se não der, mude o leito. Assim, se não houver próximas vidas, uma passagem terá sido suficiente. Se.

como sobreviver no hospício

as prioridades foram invertidas




a paz financeira sem satisfação pessoal se tornou coisa normal



os que buscam paz de espírito são considerados loucos, deficientes de senso…



mas nos ministérios, nas casas e nos bares não se chega a um consenso



Muita ordem é sinal de desordem



A ordem foi criada porque em algum período da história a desordem reinou



A vontade de querer



e a mania de agradar os olhos dos outros é igual mato,



cresce até no cimento



dificilmente achamos o veneno para exterminar esse tormento



de querer sem precisar.



Esses são os dias que mudam a vida



dias em que você se sente incapaz, não sabe o que faz



dias que você procura no céu e não encontra a paz



ai você guarda o sonho que parece ideia pequena



bola um plano, arma um esquema



porque sabe que só vai pra frente quem rema…



É dificil viver numa sociedade



em que as pessoas têm as mesmas prioridades



você gostaria de viver de arte, e depois tenta fazer sua parte



Mas e dai? Isso não importa…



o mundo mais parece uma horta



onde se cultiva cabeças de alface



e você é apenas mais uma,



é como se sua boca não falasse



como se você não tivesse voz,



esse mundo é individualista



das bocas não se escuta mais o ‘nós’,



mas por fatores externos



ninguém fica a sós…



Se enxergássemos como lição



o que parece punição,



como Deus ensinou seríamos irmãos, viveríamos em comunhão



Uso ali o sujeito oculto mas é claro que isso tem um intuito



É tanta informação que você não entende,



que te deixa descrente….



Mas isso é normal



porque hoje sofrer é coisa banal



Nesse mundo que você é só mais um



e seus defeitos são analisados com zoom



Festas, comemorações, formaturas



do lado de fora passam viaturas



do lado de dentro bêbadas criaturas,



mulheres chamorsas



aceitando propostas…



Tantos lugares estive e não me senti em casa



quantas vezes sozinha pensando na vida me senti enjoada



me senti violão desafinado, nota musical errada



Então a situação eu mudei



Essa posição eu neguei



algumas outras coisas eu enterrei



e ninguém me compra com presente



porque aqui tem um coração e litros de sangue quente, fervente…



Se analisar da nojo do mundo



dá ódio profundo



dá vontade de fugir da cidade



exterminar a sociedade..



suicidar já tive vontade, mas não fiz porque não tenho capacidade



Sou grata pela vida (nada contra os suicidas)



mas se a vida é só uma, vou sobrevivendo



no meio disso tudo vou evoluindo e crescendo…



Sobretudo tenho fé, é isso que me mantém em pé



esse é meu conselho se quem avisa amigo é.



Eu sei que são muitas ideias e são ideias loucas



por isso que eu escrevo senão eu já estaria rouca…

versinhos montillados n°1: o gato preto

O gato preto entrou no bar, não foi nenhum sinal de azar…




Se a intenção fosse de, as almas dos dependentes prejudicar,



os bêbados nem iam notar. Estavam pra lá de Bagdá!



Ele era magro, ninguém tinha notado, MAS…



MAS QUE PECADO!!!



Em frente ao balcão o gato preto parou e miou, o proprietário do bar nem olhou.



O gato preto só queria um torresmo que no prato do bêbado estava a esmo



mas de gato preto ninguém tem dó mesmo…



Enquanto o bebum entortava garrafas adentro, o gato preto estava ali sedento



Sedento por comida, pra manter sua sétima vida



O gato preto olhou pro bêbado e pensou



“meus deus, porque será que o torresmo ele não come?



porque ele não me dá? eu tô com fome!”



Ah que judiação, um gato preto levando uma vida de cão.



A fome é violenta, faz uma um homem se humilhar,



imagina um gato preto o que não faz para se alimentar



Então ele permaneceu quieto,



porque é malicioso e esperto.



Escolheu um canto, sem choro e sem pranto



Manteve com os olhos abertos



No final do expediente quase já nao tinha mais gente



Os bêbados tinham se retirado, mas o gato preto ainda estava ali parado



Esperando pra matar a fome no lixo,



revirá-lo sem nenhum capricho,



porque um gato preto com fome é apenas um bicho



Sem vaidade nem brilho, apenas estômago vazio



o torresmo do bêbado ele come



do lixo, sem luxo



o gato preto matou sua fome.

prazo de validade não estipulado

Aquelas outras faces que eu convocava para agir por mim, finjo não saber onde estão. Todas as vezes que pensei estar a dois, eram sempre três ou mais: a pessoa que eu me relacionava, eu e minhas outras faces. Quantas faces precisasse, por isso a quantidade variava de acordo com as minhas necessidades. Acontece que, entre nós, é você quem dissimula. Sim, dissimula. Quando você me olha você dissimula a minha capacidade de mentir, e eu já não consigo então, ser as outras pessoas que eu costumava ser. Você as dissipou, e eu as perdi no meio de toda a fumaça. Foi tão rápido que quando acordei para a situação, percebi que dormia há algum tempo e que era um sono muito bom, mesmo sem sonhos e rótulos. Parece que meus erros insistem em pular da minha boca  e se mostrarem para ver no que é que dá. Mostro e conto o que eu já fui e fiz na esperança de me esclarecer, antes de mais nada, para mim mesma. Por mais que eu fingisse sentir e já tivesse forçado muitos sorrisos,  não saberia nunca ordenar batidas de coração aceleradas. Portanto é tudo verdade o que vês. Compreendo, sobretudo, que sempre desrespeitei as pessoas e fui desrespeitada também. Mas você eu respeito. Não consigo fingir a respeito disso. Não tenho outras faces agora e enquanto estiver aqui e assim, não terei. As outras faces, já conto. Embarcaram antes de mim, e estarão todas me esperando no aeroporto. Lá do outro lado do mundo, bem longe daqui, talvez, voltem a me ser útil por falta de léxico ou por falta de manha. O que sinto quanto estou com você é de alguma forma um ponto de paz, e distúrbio. Poucos elogios, muitos abraços. Dois gatos. Não podia ser mais sincero. Me sinto vivendo tudo isso que está sendo ótimo como se tivesse prazo de validade, e não é o que eu quero. Mas, saiba que seria um prazer se eu pudesse, em qualquer dia do próximo mês de fevereiro, acordar com um sorriso seu. É só isso que eu penso quando te vejo dormir. Foi só isso que eu pensei enquanto você, meigo que é, me dava aquelas travesseiradas.

saquinho de risadas

Nunca fomos religiosos. Não houve um dia se quer em que fomos todos à igreja juntos, fortalecer a fé com as palavras da bíblia, interpretadas por um padre. Estivemos sim, todos juntos na igreja por algumas vezes, mas apenas para alimentar algumas tradições. Casamentos, batizados, primeira comunhão. Me recordo que fomos todos juntos em alguns casamentos, no dia da primeira comunhão da minha irmã, no dia da minha primeira comunhão e por fim no dia em que eu e minha irmã fomos batizadas. Fomos batizadas depois de nossa primeira comunhão e o batizado aconteceu quando eu tinha dez anos, minha irmã tinha onze, e nós duas já sabíamos falar meia dúzia de palavrões, cada uma. Não ocorreu tradicionalmente, uma vez que as crianças são batizadas logo nas primeiras semanas de vida. Mas o importante era batizar e ter religião. Se na escola alguém nos perguntasse, nós responderíamos convictas que éramos católicas. E isso aconteceu muitas vezes, deixando claro que não éramos crianças largadas, tínhamos religião. Nessa época me lembro também que escrevíamos cartas para a Angélica, e me lembro do bafafá que foi quando os adolescentes da rua em que nós morávamos encontraram uma camisinha usada no chão. Portanto, naquela época também já sabíamos vagamente o que era sexo, e sabíamos mais vagamente ainda o que eram os métodos contraceptivos, porque quando vimos aquele saquinho plástico, mais parecido com uma bexiga, ficamos curiosas e questionamos, os adolescentes muito sabidos, nos responderam. Eu e minha irmã íamos à missa sim, por meses e meses fomos todos os domingos, mas apenas nós duas sem nossos pais, e isso somente acontecia porque nossas amiguinhas de rua eram meninas muito bem educadas religiosamente, e iam sempre. Então a missa não era missa, pois nem ouvíamos o que o padre falava, nem prestávamos atenção. Íamos apenas para rir. Ríamos da roupa das pessoas, ríamos das velhinhas que ocasionalmente tropeçavam, ríamos das pessoas pegando a óstia, ríamos da careca do padre, ríamos dos coroinhas, ríamos de quem lia o evangelho com a voz trêmula, ríamos das imagens dos santos pelados. Foram dias maravilhosos de nossas vidas, os domingos de missa, sem o olhar de censura e rigor dos nossos pais, que preferiam assistir tevê do que ir à missa, mas que jamais permitiriam essa tremenda falta de educação de rir no meio da missa. As pessoas pediam silêncio, e nós ríamos. Falta de educação, entendo. Mas tudo era graça e tudo era motivo para rir. O medo dos nossos pais era de que as pessoas pensassem que nós duas, filhotas, não tínhamos educação. Somos realmente muito bem educadas, mas naquela época éramos crianças. Simplesmente ríamos, e isso não deve ser o maior pecado do mundo. E ríamos tanto, e perdíamos o fôlego, e fomos tão felizes, tão intensamente felizes. Talvez seja por isso que me silencio às pessoas que me dizem que eu preciso voltar a ir à missa, porque me vêem muito distante de Deus. Prefiro não argumentar quanto a isso. Que Deus está comigo eu sei, tenho muita fé, não tenho um pingo de dúvida. Mas aquela doçura de riso de criança é que não sei onde foi parar…

o vigia da construção

Quando anoitece lá vai ele para a construção, de bicicleta. Sem uniforme ele cumpre o ofício. Dificilmente leva advertências, pois não há quem o supervisione. Seus amigos de expediente são o cachorro e as paredes. O cachorro por sua vez, é vigia do vigia da construção, e ao lado dele ele também cumpre o ofício a fio, o expediente todo atento, seguindo de um canto da construção ao outro, sem nunca ficar desatento aos barulhos mínimos. Qualquer suspeita, é só latir. As paredes, bom… as paredes não falam, mas são boas ouvintes. Se falassem, ele provavelmente seria demitido por justa causa, por estar de conversa fiada. É para elas que ele desabafa as brigas conjugais, conta as estripulias dos netos, reclama do sogro, comenta o tempo, fala das coisas não feitas no decorrer da vida, fala dos arrependimentos e dos anceios, e faz shows, pois canta nos domingos mais tranquilos. Elas, mudas que são, não fazem fofoca e creio que não o fariam se mudas não fossem, pois são muito companheiras, principalmente as paredes do canto esquerdo da construção. É naquele canto que ele passa a maioria do expediente, pensando alto, pensando baixo. É lá que ele come o pão que leva, e é lá que ele se encosta na grade. Sem cadeiras e mesas, ele cumpre seu ofício. Sem papéis nem livretos, sem manuais nem data de entrega, sem pauta nem margem, sem uniforme, sem distinção de cargos e toda hierarquia (e paletós, e vinco na calça, e causa e efeito, e ação e reação), sem calculadoras e sem outra maior pretensão a respeito de seus domingos, ele trabalha. Sozinho, ele cumpre sua função, sua função de estar ali e atento. Observando o movimento dos carros, atento no movimento das pessoas, olhando os animais, atento no barulho dos pássaros (e no latido do cão, e na sirene da polícia, no barulho das janelas se fechando, nos passos de alguém que pode vir, conversas de quem acabou de sair da missa), observando  e ouvindo cada detalhe, minuciosamente, ele trabalha. Sua função é cumprir a função, sem nunca fechar os olhos ou piscar lentamente. Suas ferramentas de trabalho são os olhos, e mantê-los aberto a noite toda, todos os domingos, lhe vale a comida na mesa. Passa a noite toda assim,nos domingos,  vigiando, mas nem ele sabe o que fazer se um ladrão aparecer.  Ladrão de sei  lá o que, eu quero dizer mal caráter. Se algum conhecido passar e cumprimentá-lo, será o maior prazer. Se um ladrão vier, seja o que Deus quiser.  E se isso acontecer, naquela construção escura e inacabada, e se ele reagir e morrer, há de haver uma pensão do governo, uma bolsa família para esses casos extremos. Há de haver um jeito - ele pensa - sempre tem um jeito. E é assim que se aposenta nesse país - nos casos mais extremos. Morrendo.

mãe

Naquela manhã éramos apenas nós duas, nossas bolsas, o cansaço de sempre, um saco ração nas minhas mãos, meus planos todos me circulando, os olhares compreensivos dela para mim, o meu olhar sempre cabisbaixo para ela, uma pasta com meus papéis burocráticos nas mãos dela, nossas esperanças, e duas sacolas, uma que comportava dois livros que ela tinha acabado de comprar para mim, no sebo ali perto do rio, e a outra que comportava uma saboneteira e uma escovinha de limpar banheiro, compradas na loja do Cardoso; dentro desta sacola havia outra sacola com um brócolis ninja, brócolis japonês, o nosso desejo do dia. Colocar sacolas dentro de sacolas, é uma coisa normalíssima para nós que não gostamos de carregar mais que três sacolas- isso quando não colocamos sacolas dentro de sacolas e depois colocamos na bolsa, para andarmos com as mãos livres, porque é maravilhoso poder gesticular. Ela me perguntava todo momento se eu estava com sede, se eu queria que ela comprasse um copo de água. Sentamos para esperar o ônibus, nós todos. Mas eu e ela éramos as protagonistas, os outros citados, coadjuvantes. Tantos carros passavam, tantas pessoas passavam, tantas pernas andavam e uma barulheira de mundo, de confusão, de corrida, de pressa, de apelo social, e nosso ônibus não vinha. Quando meu sonho, que depositei todas as fichas e fé, voltou-se a mim eu quiz chorar, e logo deitei minha cabeça no ombro dela. Peco pelo excesso, e por acreditar que minhas vontades são urgências urgentes. Passou. Quando o ônibus veio, entramos e sentamos, mas logo na próxima parada, uma mulher entrou com seu neném e levantamos do banco para dar a ela um lugar para sentar. Fomos educadas e sensatas, já essa mulher não foi não. Ao invés de colocar a filha no colo, e dar um lugar a uma de nós, ela sentou-se e colocou sua filha no outro banco, sua filha que de tão pequena talvez até preferisse sentar no colo da mãe, porque eu quando era criança ia preferir isso, acho que todas crianças preferem isso. Eu se pudesse entraria dentro da minha mãe, e ainda creio que amaria lotação de ônibus para poder sentar no colo da minha mãe, ficar apertada no colo dela, grudada nela, bem perto dela, sentindo seu cheiro, ouvindo seu coração batendo, brincando com os pelinhos do seu braço. Com certeza ela me sentaria no seu colo para dar lugar a outra pessoa, não tenho dúvidas. Mas em pé ficamos, minha mãe nem percebeu, isso foi coisa da minha cabeça, porque eu queria que ela se sentasse. Imagina se o motorista freia e minha mãe cai? - pensei. Não há coisa que compadece mais meu coração do  que ver minha mãe cair ou tropeçar. Até mesmo saber que ela caiu ou tropeçou me dói, parece a pior das sensações, e ao mesmo tempo engraçada, coisa fragilíssima, me sinto incapaz, é como se eu fosse a mãe, e por isso entendo porque algumas mães brigam com os coleguinhas de escola do filho por causa de uma borracha ou empurrão  que seja, porque viram bicho pior, de tanto que querem proteger.  Ali mesmo trocamos umas palavras, olhamos no relógio e estava tudo bem. Adiante o ônibus esvaziou e nos sentamos. Não é comum trocarmos carinhos, mas ela acariciou o meu cabelo, e depois me abraçou. Quando deitei a cabeça no colo dela, ela me envolveu com seu braço, que o outro braço segurava minha pasta burocrática (a pasta que eu me recuso a carregar). Sua mão leve, branda, porque as mãos quando acariciam não se contentam em tocar, ficam se movimentando, apertando, os dedos se levantam e se abaixam sincronicamente e era como se ela me desse tapinhas, e sabemos que isso é de amor, como se as mãos falassem ‘filha eu estou aqui, respira’. E sem que eu tivesse falado do medo do fracasso, ela sentia isso e por isso me abraçou. Ela sabe da urgência das minhas vontades e sabe que sofro com isso. Sei que Deus é divino e toda a sua obra, e chego a achar que ele permite que as mãos das mães também sejam divinas, assim como o coração infinito que elas têm, de quem pode amar sempre mais um filho, da mesma maneira. Há um quê de divindade nas mãos da minha mãe. E no meio de toda a bagunça multisocial e das sacolas, e das bolsas e o saco de ração, dos planos e da esperança, no meio das comprinhas eventuais, no meio daquele ônibus, daquele barulho do mundo, dos tumultos internos, e das vidas alheias, mais o meu medo do fracasso, eu me senti em paz, mesmo no caos das minhas dúvidas. O fato é que tenho saudade da minha mãe… muito antes de ter nascido.