segunda-feira, 15 de agosto de 2011

enquanto pulsar

Haverá sempre um rosto, um gosto, um  encosto, uma imaginação da Ariosto. E as coisas impossíveis perturbando as coisas cabíveis. Haverá sempre um jeito. Se não der, mude o leito. Assim, se não houver próximas vidas, uma passagem terá sido suficiente. Se.

como sobreviver no hospício

as prioridades foram invertidas




a paz financeira sem satisfação pessoal se tornou coisa normal



os que buscam paz de espírito são considerados loucos, deficientes de senso…



mas nos ministérios, nas casas e nos bares não se chega a um consenso



Muita ordem é sinal de desordem



A ordem foi criada porque em algum período da história a desordem reinou



A vontade de querer



e a mania de agradar os olhos dos outros é igual mato,



cresce até no cimento



dificilmente achamos o veneno para exterminar esse tormento



de querer sem precisar.



Esses são os dias que mudam a vida



dias em que você se sente incapaz, não sabe o que faz



dias que você procura no céu e não encontra a paz



ai você guarda o sonho que parece ideia pequena



bola um plano, arma um esquema



porque sabe que só vai pra frente quem rema…



É dificil viver numa sociedade



em que as pessoas têm as mesmas prioridades



você gostaria de viver de arte, e depois tenta fazer sua parte



Mas e dai? Isso não importa…



o mundo mais parece uma horta



onde se cultiva cabeças de alface



e você é apenas mais uma,



é como se sua boca não falasse



como se você não tivesse voz,



esse mundo é individualista



das bocas não se escuta mais o ‘nós’,



mas por fatores externos



ninguém fica a sós…



Se enxergássemos como lição



o que parece punição,



como Deus ensinou seríamos irmãos, viveríamos em comunhão



Uso ali o sujeito oculto mas é claro que isso tem um intuito



É tanta informação que você não entende,



que te deixa descrente….



Mas isso é normal



porque hoje sofrer é coisa banal



Nesse mundo que você é só mais um



e seus defeitos são analisados com zoom



Festas, comemorações, formaturas



do lado de fora passam viaturas



do lado de dentro bêbadas criaturas,



mulheres chamorsas



aceitando propostas…



Tantos lugares estive e não me senti em casa



quantas vezes sozinha pensando na vida me senti enjoada



me senti violão desafinado, nota musical errada



Então a situação eu mudei



Essa posição eu neguei



algumas outras coisas eu enterrei



e ninguém me compra com presente



porque aqui tem um coração e litros de sangue quente, fervente…



Se analisar da nojo do mundo



dá ódio profundo



dá vontade de fugir da cidade



exterminar a sociedade..



suicidar já tive vontade, mas não fiz porque não tenho capacidade



Sou grata pela vida (nada contra os suicidas)



mas se a vida é só uma, vou sobrevivendo



no meio disso tudo vou evoluindo e crescendo…



Sobretudo tenho fé, é isso que me mantém em pé



esse é meu conselho se quem avisa amigo é.



Eu sei que são muitas ideias e são ideias loucas



por isso que eu escrevo senão eu já estaria rouca…

versinhos montillados n°1: o gato preto

O gato preto entrou no bar, não foi nenhum sinal de azar…




Se a intenção fosse de, as almas dos dependentes prejudicar,



os bêbados nem iam notar. Estavam pra lá de Bagdá!



Ele era magro, ninguém tinha notado, MAS…



MAS QUE PECADO!!!



Em frente ao balcão o gato preto parou e miou, o proprietário do bar nem olhou.



O gato preto só queria um torresmo que no prato do bêbado estava a esmo



mas de gato preto ninguém tem dó mesmo…



Enquanto o bebum entortava garrafas adentro, o gato preto estava ali sedento



Sedento por comida, pra manter sua sétima vida



O gato preto olhou pro bêbado e pensou



“meus deus, porque será que o torresmo ele não come?



porque ele não me dá? eu tô com fome!”



Ah que judiação, um gato preto levando uma vida de cão.



A fome é violenta, faz uma um homem se humilhar,



imagina um gato preto o que não faz para se alimentar



Então ele permaneceu quieto,



porque é malicioso e esperto.



Escolheu um canto, sem choro e sem pranto



Manteve com os olhos abertos



No final do expediente quase já nao tinha mais gente



Os bêbados tinham se retirado, mas o gato preto ainda estava ali parado



Esperando pra matar a fome no lixo,



revirá-lo sem nenhum capricho,



porque um gato preto com fome é apenas um bicho



Sem vaidade nem brilho, apenas estômago vazio



o torresmo do bêbado ele come



do lixo, sem luxo



o gato preto matou sua fome.

prazo de validade não estipulado

Aquelas outras faces que eu convocava para agir por mim, finjo não saber onde estão. Todas as vezes que pensei estar a dois, eram sempre três ou mais: a pessoa que eu me relacionava, eu e minhas outras faces. Quantas faces precisasse, por isso a quantidade variava de acordo com as minhas necessidades. Acontece que, entre nós, é você quem dissimula. Sim, dissimula. Quando você me olha você dissimula a minha capacidade de mentir, e eu já não consigo então, ser as outras pessoas que eu costumava ser. Você as dissipou, e eu as perdi no meio de toda a fumaça. Foi tão rápido que quando acordei para a situação, percebi que dormia há algum tempo e que era um sono muito bom, mesmo sem sonhos e rótulos. Parece que meus erros insistem em pular da minha boca  e se mostrarem para ver no que é que dá. Mostro e conto o que eu já fui e fiz na esperança de me esclarecer, antes de mais nada, para mim mesma. Por mais que eu fingisse sentir e já tivesse forçado muitos sorrisos,  não saberia nunca ordenar batidas de coração aceleradas. Portanto é tudo verdade o que vês. Compreendo, sobretudo, que sempre desrespeitei as pessoas e fui desrespeitada também. Mas você eu respeito. Não consigo fingir a respeito disso. Não tenho outras faces agora e enquanto estiver aqui e assim, não terei. As outras faces, já conto. Embarcaram antes de mim, e estarão todas me esperando no aeroporto. Lá do outro lado do mundo, bem longe daqui, talvez, voltem a me ser útil por falta de léxico ou por falta de manha. O que sinto quanto estou com você é de alguma forma um ponto de paz, e distúrbio. Poucos elogios, muitos abraços. Dois gatos. Não podia ser mais sincero. Me sinto vivendo tudo isso que está sendo ótimo como se tivesse prazo de validade, e não é o que eu quero. Mas, saiba que seria um prazer se eu pudesse, em qualquer dia do próximo mês de fevereiro, acordar com um sorriso seu. É só isso que eu penso quando te vejo dormir. Foi só isso que eu pensei enquanto você, meigo que é, me dava aquelas travesseiradas.

saquinho de risadas

Nunca fomos religiosos. Não houve um dia se quer em que fomos todos à igreja juntos, fortalecer a fé com as palavras da bíblia, interpretadas por um padre. Estivemos sim, todos juntos na igreja por algumas vezes, mas apenas para alimentar algumas tradições. Casamentos, batizados, primeira comunhão. Me recordo que fomos todos juntos em alguns casamentos, no dia da primeira comunhão da minha irmã, no dia da minha primeira comunhão e por fim no dia em que eu e minha irmã fomos batizadas. Fomos batizadas depois de nossa primeira comunhão e o batizado aconteceu quando eu tinha dez anos, minha irmã tinha onze, e nós duas já sabíamos falar meia dúzia de palavrões, cada uma. Não ocorreu tradicionalmente, uma vez que as crianças são batizadas logo nas primeiras semanas de vida. Mas o importante era batizar e ter religião. Se na escola alguém nos perguntasse, nós responderíamos convictas que éramos católicas. E isso aconteceu muitas vezes, deixando claro que não éramos crianças largadas, tínhamos religião. Nessa época me lembro também que escrevíamos cartas para a Angélica, e me lembro do bafafá que foi quando os adolescentes da rua em que nós morávamos encontraram uma camisinha usada no chão. Portanto, naquela época também já sabíamos vagamente o que era sexo, e sabíamos mais vagamente ainda o que eram os métodos contraceptivos, porque quando vimos aquele saquinho plástico, mais parecido com uma bexiga, ficamos curiosas e questionamos, os adolescentes muito sabidos, nos responderam. Eu e minha irmã íamos à missa sim, por meses e meses fomos todos os domingos, mas apenas nós duas sem nossos pais, e isso somente acontecia porque nossas amiguinhas de rua eram meninas muito bem educadas religiosamente, e iam sempre. Então a missa não era missa, pois nem ouvíamos o que o padre falava, nem prestávamos atenção. Íamos apenas para rir. Ríamos da roupa das pessoas, ríamos das velhinhas que ocasionalmente tropeçavam, ríamos das pessoas pegando a óstia, ríamos da careca do padre, ríamos dos coroinhas, ríamos de quem lia o evangelho com a voz trêmula, ríamos das imagens dos santos pelados. Foram dias maravilhosos de nossas vidas, os domingos de missa, sem o olhar de censura e rigor dos nossos pais, que preferiam assistir tevê do que ir à missa, mas que jamais permitiriam essa tremenda falta de educação de rir no meio da missa. As pessoas pediam silêncio, e nós ríamos. Falta de educação, entendo. Mas tudo era graça e tudo era motivo para rir. O medo dos nossos pais era de que as pessoas pensassem que nós duas, filhotas, não tínhamos educação. Somos realmente muito bem educadas, mas naquela época éramos crianças. Simplesmente ríamos, e isso não deve ser o maior pecado do mundo. E ríamos tanto, e perdíamos o fôlego, e fomos tão felizes, tão intensamente felizes. Talvez seja por isso que me silencio às pessoas que me dizem que eu preciso voltar a ir à missa, porque me vêem muito distante de Deus. Prefiro não argumentar quanto a isso. Que Deus está comigo eu sei, tenho muita fé, não tenho um pingo de dúvida. Mas aquela doçura de riso de criança é que não sei onde foi parar…

o vigia da construção

Quando anoitece lá vai ele para a construção, de bicicleta. Sem uniforme ele cumpre o ofício. Dificilmente leva advertências, pois não há quem o supervisione. Seus amigos de expediente são o cachorro e as paredes. O cachorro por sua vez, é vigia do vigia da construção, e ao lado dele ele também cumpre o ofício a fio, o expediente todo atento, seguindo de um canto da construção ao outro, sem nunca ficar desatento aos barulhos mínimos. Qualquer suspeita, é só latir. As paredes, bom… as paredes não falam, mas são boas ouvintes. Se falassem, ele provavelmente seria demitido por justa causa, por estar de conversa fiada. É para elas que ele desabafa as brigas conjugais, conta as estripulias dos netos, reclama do sogro, comenta o tempo, fala das coisas não feitas no decorrer da vida, fala dos arrependimentos e dos anceios, e faz shows, pois canta nos domingos mais tranquilos. Elas, mudas que são, não fazem fofoca e creio que não o fariam se mudas não fossem, pois são muito companheiras, principalmente as paredes do canto esquerdo da construção. É naquele canto que ele passa a maioria do expediente, pensando alto, pensando baixo. É lá que ele come o pão que leva, e é lá que ele se encosta na grade. Sem cadeiras e mesas, ele cumpre seu ofício. Sem papéis nem livretos, sem manuais nem data de entrega, sem pauta nem margem, sem uniforme, sem distinção de cargos e toda hierarquia (e paletós, e vinco na calça, e causa e efeito, e ação e reação), sem calculadoras e sem outra maior pretensão a respeito de seus domingos, ele trabalha. Sozinho, ele cumpre sua função, sua função de estar ali e atento. Observando o movimento dos carros, atento no movimento das pessoas, olhando os animais, atento no barulho dos pássaros (e no latido do cão, e na sirene da polícia, no barulho das janelas se fechando, nos passos de alguém que pode vir, conversas de quem acabou de sair da missa), observando  e ouvindo cada detalhe, minuciosamente, ele trabalha. Sua função é cumprir a função, sem nunca fechar os olhos ou piscar lentamente. Suas ferramentas de trabalho são os olhos, e mantê-los aberto a noite toda, todos os domingos, lhe vale a comida na mesa. Passa a noite toda assim,nos domingos,  vigiando, mas nem ele sabe o que fazer se um ladrão aparecer.  Ladrão de sei  lá o que, eu quero dizer mal caráter. Se algum conhecido passar e cumprimentá-lo, será o maior prazer. Se um ladrão vier, seja o que Deus quiser.  E se isso acontecer, naquela construção escura e inacabada, e se ele reagir e morrer, há de haver uma pensão do governo, uma bolsa família para esses casos extremos. Há de haver um jeito - ele pensa - sempre tem um jeito. E é assim que se aposenta nesse país - nos casos mais extremos. Morrendo.

mãe

Naquela manhã éramos apenas nós duas, nossas bolsas, o cansaço de sempre, um saco ração nas minhas mãos, meus planos todos me circulando, os olhares compreensivos dela para mim, o meu olhar sempre cabisbaixo para ela, uma pasta com meus papéis burocráticos nas mãos dela, nossas esperanças, e duas sacolas, uma que comportava dois livros que ela tinha acabado de comprar para mim, no sebo ali perto do rio, e a outra que comportava uma saboneteira e uma escovinha de limpar banheiro, compradas na loja do Cardoso; dentro desta sacola havia outra sacola com um brócolis ninja, brócolis japonês, o nosso desejo do dia. Colocar sacolas dentro de sacolas, é uma coisa normalíssima para nós que não gostamos de carregar mais que três sacolas- isso quando não colocamos sacolas dentro de sacolas e depois colocamos na bolsa, para andarmos com as mãos livres, porque é maravilhoso poder gesticular. Ela me perguntava todo momento se eu estava com sede, se eu queria que ela comprasse um copo de água. Sentamos para esperar o ônibus, nós todos. Mas eu e ela éramos as protagonistas, os outros citados, coadjuvantes. Tantos carros passavam, tantas pessoas passavam, tantas pernas andavam e uma barulheira de mundo, de confusão, de corrida, de pressa, de apelo social, e nosso ônibus não vinha. Quando meu sonho, que depositei todas as fichas e fé, voltou-se a mim eu quiz chorar, e logo deitei minha cabeça no ombro dela. Peco pelo excesso, e por acreditar que minhas vontades são urgências urgentes. Passou. Quando o ônibus veio, entramos e sentamos, mas logo na próxima parada, uma mulher entrou com seu neném e levantamos do banco para dar a ela um lugar para sentar. Fomos educadas e sensatas, já essa mulher não foi não. Ao invés de colocar a filha no colo, e dar um lugar a uma de nós, ela sentou-se e colocou sua filha no outro banco, sua filha que de tão pequena talvez até preferisse sentar no colo da mãe, porque eu quando era criança ia preferir isso, acho que todas crianças preferem isso. Eu se pudesse entraria dentro da minha mãe, e ainda creio que amaria lotação de ônibus para poder sentar no colo da minha mãe, ficar apertada no colo dela, grudada nela, bem perto dela, sentindo seu cheiro, ouvindo seu coração batendo, brincando com os pelinhos do seu braço. Com certeza ela me sentaria no seu colo para dar lugar a outra pessoa, não tenho dúvidas. Mas em pé ficamos, minha mãe nem percebeu, isso foi coisa da minha cabeça, porque eu queria que ela se sentasse. Imagina se o motorista freia e minha mãe cai? - pensei. Não há coisa que compadece mais meu coração do  que ver minha mãe cair ou tropeçar. Até mesmo saber que ela caiu ou tropeçou me dói, parece a pior das sensações, e ao mesmo tempo engraçada, coisa fragilíssima, me sinto incapaz, é como se eu fosse a mãe, e por isso entendo porque algumas mães brigam com os coleguinhas de escola do filho por causa de uma borracha ou empurrão  que seja, porque viram bicho pior, de tanto que querem proteger.  Ali mesmo trocamos umas palavras, olhamos no relógio e estava tudo bem. Adiante o ônibus esvaziou e nos sentamos. Não é comum trocarmos carinhos, mas ela acariciou o meu cabelo, e depois me abraçou. Quando deitei a cabeça no colo dela, ela me envolveu com seu braço, que o outro braço segurava minha pasta burocrática (a pasta que eu me recuso a carregar). Sua mão leve, branda, porque as mãos quando acariciam não se contentam em tocar, ficam se movimentando, apertando, os dedos se levantam e se abaixam sincronicamente e era como se ela me desse tapinhas, e sabemos que isso é de amor, como se as mãos falassem ‘filha eu estou aqui, respira’. E sem que eu tivesse falado do medo do fracasso, ela sentia isso e por isso me abraçou. Ela sabe da urgência das minhas vontades e sabe que sofro com isso. Sei que Deus é divino e toda a sua obra, e chego a achar que ele permite que as mãos das mães também sejam divinas, assim como o coração infinito que elas têm, de quem pode amar sempre mais um filho, da mesma maneira. Há um quê de divindade nas mãos da minha mãe. E no meio de toda a bagunça multisocial e das sacolas, e das bolsas e o saco de ração, dos planos e da esperança, no meio das comprinhas eventuais, no meio daquele ônibus, daquele barulho do mundo, dos tumultos internos, e das vidas alheias, mais o meu medo do fracasso, eu me senti em paz, mesmo no caos das minhas dúvidas. O fato é que tenho saudade da minha mãe… muito antes de ter nascido.

hoje a culpa é da janela

Afinal, qual a finalidade das janelas? Se não para arejar as casas, deixarem a luz do sol entrar, e quando noite o sereno, e nos dias encalorados o vento do norte que sopra forte? Para quê servem as janelas se não apenas para embolar flertadas momentâneas? Para quê servem as janelas se não para colocarmos os cotovelos sobre elas e apoiarmos o queixo nas mãos, para então termos reflexões intensas? Pra quê servem as janelas se não para serem palco de romances caseiros? Até porque os mais modernos não se presam a começar por conta de sorrisos amarelados das afilhadas, das filhas, das netas, das primas e das amigas, vindos todos de uma janela! Para quê servem então, as janelas, se não para que possam dela vigiar a vida do vizinho, prestar atenção nos movimentos das pessoas, e nas roupas, nas etiquetas, e nos carros, e nas nuvens, e nas rodas, e nos cantos dos passeios, e nos canos, e nos tocos de madeira e nos idosos? Pra quê servem as janelas se não para que possam avistar a lua da cama onde se deitam? Para que servem então, as janelas, se não para que possam ver o tempo como está, e assim decidirem com que roupa ir? Eu pelo menos não tenho deixado minha janela ser janela. Dela enxergo somente o quintal de casa e a casa dos fundos. Algumas vezes vejo roupas no varal, secando, e vejo a travessia do gato de um canto para o outro. Para não culpá-la mais direi que dela não vejo a lua por conta da árvore da casa do vizinho, que a tampa completamente todas as noites em que tudo que eu mais preciso é olhá-la da cama do meu quarto. Não coloco meus cotovelos sobre ela para então apoiar o queixo na mão, porque isso é coisa de quem quer arranjar namorado ou ter reflexões intensas. Mesmo tendo certeza da veracidade da frase que Machado de Assis escreveu em seu livro ‘Dom Casmurro’: ‘nem a visão do impossível precisa mais que de um recanto de ônibus’… eu ainda desconfio. Sendo assim penso que qualquer lugar pode ser terra fértil para grandes reflexões, mas não, não da minha janela. Da minha janela não tenho reflexões, não observo pessoas, nem o céu. Ela serve somente para arejar o quarto, e mesmo assim, não temos muito contato, porque quando dou por mim a janela já está aberta. Minha mãe tem essa coisa de abrir as janelas, e ela sempre corre para abrir logo me vê atravessando o corredor. Ela corre para abrir a janela do meu quarto e eu rastejo para chegar ao banheiro e olhar meu rosto no espelho, de quem acabou de acordar. As poucas vezes que vou abrí-la ou fechá-la, ela se dá ao luxo de emperrar. Simplesmente não fecha, quando eu quero fechá-la, e simplesmente não abre, quando eu quero abrí-la, super teimosa. Outro motivo para essa falta de ‘diálogo’ existente entre a janela e eu, é que eu quase não fico no meu quarto, como essas adolescentes fazem de achar prazeroso ficarem no quarto olhando o pôster do cantor favorito, ouvindo música, ou até mesmo como os mais cultos que ficam lendo livros, mas eu leio na varanda de casa, não preciso do meu quarto nem de lutar para abrir uma janela que não quer ser aberta. Por conta dela descobri como é bom ler na varanda. Outro fato é que, uma vez que eu levanto da cama não entro mais no meu quarto, se entro é coisa rapidíssima, como por exemplo, para trocar de roupa depois do banho, mas creio que saio dele antes mesmo de entrar. Na verdade, eu não gosto mesmo é do meu quarto.


fantasmagórica - confissão de suicida

O ar vinha com força, fazia meu cabelo parecer estar em gravidade, para cima e pontiagudo. Era um vento tão forte, que me faltava o ar; era um vento que me engasgava. Meus olhos engoliam a pressa do momento, do fim, pois os segundos pareciam-me eternidade. Eu sofri a angústia e o pavor dos segundos que encerrariam todo o processo da minha desistência vital. Sem volta, me doei ao tempo, me joguei do morro. Naqueles segundos, lentos e sóbrios, fui caindo, como folha seca de árvore. Segundos intermináveis segundos. Tão lentos que na queda pude ainda indagar os motivos de toda a minha vida, e as razões que me levaram até o topo morro, movida pela fragilidade psicológica que me aflingia há tempos e nunca se solucionava. A vida não tinha sentido, e o que eu acabara de fazer menos ainda. Mas não houve tempo para arrependimentos. Confesso que bateu a vontade de voltar o tempo, de parar a vida, de pausar a queda, mas era tarde demais para manter os pés no chão, uma vez que eles já tinham dado o passo decisivo, e já estavam alcançando o próximo chão, o chão para o qual eu havia saltado. Alcancei o chão. Sem dor, sem maiores pesares. Saiu tudo como eu havia planejado, e a minha vida eu tirei. Morri. Levantei, e olhei meu corpo. Estava completamente destruído. Sem matéria hoje vago, transito sem rumo, sem cheiro nem sombra. Não posso tomar água de cachoeira. Não sinto o vento. Os cachorros não me enchergam e os nenéns não brincam mais comigo. Nenhuma borboleta pousa no meu ombro, e não há passarinho que acerte a minha cabeça, até porque não tenho. Não sinto calor, nem frio. Não consigo pegar maçã das árvores e ninguém sorri para mim. Não durmo nem tenho sonhos. Não sonho e não tenho sonhos, porque não tenho vida. Enxergo, mas estou invisível. Escuto, mas estou inaudível. Não tenho mais sorriso. Não sei se isso vai acabar. Não tenho mais os olhos, as portas da alma. Não tenho voz. Eu cometi um suicídio. Sou apenas uma voz muda, um pensamento trancafiado na imensidão, um par de asas sem passarinho, vagando no tempo e no espaço sem prazo nem previsão, e isso … isso é o inferno.
Ocupar a cabeça com coisas vagas é fazer com que o cérebro deixe de ser terra fértil e passe a ser apenas esterco. (rmlaurelli)

luto por domingo

Domingo é dia de acordar devagar e dormir denovo. É dia de virar para o lado e virar para o outro; é dia de acordar engasgando, interromper cinco sonhos até desistir de dormir; é dia de andar no corredor da casa, buscar copos de água e sentar na beira da cama. Domingo é dia de acariciar o gato com o pé, de puxar o cobertor com a perna, de fechar a geladeira com a bunda, e deixar o pé no chão, descalço. Domingo é dia de usar roupas largas. Domingo também é dia de usar roupas velhas. Domingo é dia de acordar antes do sol, de acordar antes dos pais. Domingo é dia de ouvir o silêncio de todas as vozes, quando as bocas estão fechadas, e ligar a tevê baixinho e desligar rapidinho; é dia de ouvir o barulho do tic tac do relógio tic-taqueando non-stop, fazendo você não mais querer os últimos cinco minutos no sofá; é dia de pular o breakfast, de acordar os outros com o barulho da descarga, com o barulho da torneira e com o barulho do trio: espuma, escova de dente e os dentes todos. Domingo é dia de não se importar com a campainha, de não levantar para ver a passeata, de não ir à janela ver o avião. Domingo é dia de ser tartaruga, sem ser ninja coisa nenhuma, é dia de ser geléia, é dia de ser maria-mole, bicho preguiça. Domingo é dia do jornal ser meu, é dia de raptar colunas, de se apaixonar por colunistas, de recortar o que interessa. Domingo é dia de adiar até que alguém mande, é dia de de esperar segundas ordens. Domingo é dia de tomar banho morníssimo. Domingo a canção é o barulho dos motores dos carros velozes da fórmula I, e soa como canção de ninar, algumas risadinhas dos recém-acordados na sala, e é dia de vê-los brigando pelo controle, pelo canal, pelo volume. Domingo é dia de se encaixar nos cantos, de repetir o prato do almoço, de deixar o corpo fazer digestão. É dia de ser devagar, de andar sem pressa, de pensar lento, de piscar pouco, de olhar pro nada, de falar menos. E segunda-feira estou de luto.

sonho ou cupcake?

Naquele momento




seus lábios pareciam chumaços de algodão,



pareciam chantily.



Eles falavam macios e doces:



‘você tem que se decidir’



Eu me senti chupando limão,



me senti comendo ração



senti até o gosto do chão



tamanha foi a indecisão!



Será que você viu



que eu estou sofrendo por antecipação?



E se até o dia que eu for embora



estivermos como estamos agora?



E se um dia eu voltar?



(e se eu não voltar?)



(e se eu não for?)



Por milésimos de segundo



no meio daquele diálogo



imaginei possibilidades.



Ciente de que não teria ’restaurar a sessão’



nem ’stand-by’.



Lembrei da minha mãe,



consecutivamente pensei no meu pai.



Então mudei de assunto!



Me veio subtamente a receita que faríamos



e foi assim



que fui do sonho ao cupcake.



Sonho ou cupcake?

par perfeito

ele diz que ama, ela diz que ama infinitamente mais




ele aperta o pescoço dela, ela pede pra apertar um pouco mais



ela mente, ele pede pra que ela minta mais uma vez



ele perdoa, ela exige o perdão só mais uma vez



ela perdoa, ele faz de novo



ele faz de novo e se transforma sozinho, diz que mudou, que não é o mesmo



ela se comove e depois se envolve



(com coisas que só ela sabe)



e no relacionamento a dois, três é o mínimo



e a culpa vai para a primeira pessoa que passar na frente com a cara limpa



e se não tiver antecedentes, e se for loira, e se for a melhor amiga



não importa! a culpa nela que não fica…



Separados armam tocaias



Juntos bolam planos



dignos de novela mexicana



e pensam que são imperceptíveis



e pensam que ninguém mais sabe jogar, além deles mesmos (grande erro)



Passam um por cima do outro



e passam por cima de todos os orgulhos



e recomeçam pela porta dos fundos



e varrem toda poeira para debaixo do tapete



e vestem o melhor sorriso



e excluem de suas vidas as pessoas, como se deletassem um e-mail



e sorriem com os dentes mais brancos



e engolem salivas secas



e suprimem pensamentos



e exteriorizam todas as raivas



e desfilam com a única capa vermelha da cidade



a capa da alegria de muitos



-que cobre toda a insatisfação do passado,



que cobre todo o amor abalado



como se hoje tudo estivesse superado



e seguem juntos no mesmo objetivo



nem sabem ao certo de quê, talvez o amor infinito



amor que nem sabem se têm



amor que não sabem se perderam



no meio do quarto dele



ou no meio da faculdade dela



Na hora da raiva viram diretores de teatro



decidem a cena



os personagens



se esquecendo que o teatro é ao vivo



e que há possibilidades de que algo não vá como no ensaio



e não sabem como lidar com isso,



passam a culpa pro próximo como se fosse uma bola



Novamente



trocam juras de amor,



mas querem provas de um acontecido



telefonemas



visitas inesperadas



esclarecimentos



Um acusa o outro



um defama o outro



e os dois se amam assim,



de um jeito que



mais humano não poderia ser.



Porque o ser humano não sabe amar.



Sabe fingir.



(Boa sorte para vocês dois, de coração… Mas não me liguem mais! Não me procurem mais! Esqueçam o endereço da minha casa! E continuem o casal mais bonito da cidade!)

prepotência

Sou complicadíssima.




Sou pimenta do reino, limão rosa.



Não há açucar que me adoçe,



Não há farinha que me engrosse.



E, em momento algum, eu deixo de ser escritora



só porque você não é leitor



- ou leitora.



Boa noite.

da dívida que tenho para com a família

Não é nada financeiro - nada que tenha juros e correção monetária. Nada que diga respeito à suposta aliança entre os membros da família. Talvez se trate apenas de mais um empréstimo de paciência. O fato é que se não fosse a ausência diária, o olhar avesso nos corredores da casa, o momento em que se passa o sal na mesa, a ligação não atendida e a mão que segura o controle; se não fosse a conversa interrupta na hora da novela, o cochicho e o sorriso amarelo, a teia de aranha no canto da parede, a escova de dente solta na pia do banheiro; se não fossem os cabelos no chão e no pente, as capas organizadamente guardadas na gaveta do rack - de livros que não sabemos onde estão; se não fosse a impressora quebrada no guarda-roupa, a mala antiga e o casamento que não fomos; se não fosse, no exato momento, a mentira necessária, o berro e a vontade de moral - de sermos todos respeitados na vila, de não sermos palavras chulas na boca dos peões de fábrica e dos coronéis - ratos de farda; e se não fosse o palpite tenaz, o castigo da infância, o óleo de fígado de bacalhau em vez de do Biotônico Fontoura; se não fosse apenas uma mochila de rodinhas ao invés de duas, se não fosse a maneira displicente de de lamber o prato - e de tomar a última gota do suco de cenoura e laranja feito na hora do almoço de dias monetariamente mais alegres; e se não fosse o cochilo no sofá e todas as paredes brancas da casa -que não podem nunca ser pintadas de outras cores, e se não fossem todas as normas de horários e obrigações - quase nunca cumpridas antes do segundo expediente, devido à ausência ameaçadora das mãos pesadas; se não fossem as risadas e os choros situações muito próximas; se não fosse tudo isso e mais algumas coisas que me recuso a citar, por achar que são pessoalíssimas e peculiares, a minha casa - não havendo mais quem a intitulasse lar - simplesmente desmoronaria.




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ps: este texto é uma intertextualidade com o referenciado abaixo:



CASTRO, Marcílio França. Da Dívida que Temos para com os Cães. Folha de São Paulo, Sao Paulo, 17 jul. 2011. Caderno Ilustríssima, p. 8.

graças a Deus

Um dia acordei pela manhã com a notícia de um acidente gravíssimo. Cinco pessoas estavam em um carro, que perdeu o controle na pista e capotou várias vezes. Três pessoas morreram e duas ficaram em estado grave. A notícia percorreu a cidade como um vírus mortal, rápido e preciso. Uma situação realmente complicada, pois eram todos adolescentes, estavam se divertindo em uma noite de sábado. Até que ouvi minha vizinha, que é religiosa fervorosa, e tem passado mais tempo na igreja com o suposto Jesus Cristo da igreja católica do que com o próprio marido, comentar com minha mãe que conhecia uma das vítimas que ficou em estado grave, e logo que falou isso lançou o bordão ’Graças a Deus’, que o adolescente que ela conhecia não tinha morrido, estava em estado grave mas estava vivo. Graças a Deus! E eu me pergunto, ‘Graças a Deus’? Como assim Graças a Deus? Como se Deus quizesse que três pessoas morressem e duas permanecessem vivas? Isso seria a coisa mais conflitante que poderia existir. É essa a impressão que as pessoas têm! É essa a impressão que eu tenho dos religiosos fervorosos, que passam horas e horas na igreja rezando terços, mas quando se vêem diante de acontecimentos errôneos totalmente humanos, não conseguem assumir que a falha é humana, e por isso colocam o nome de Deus em situações para amenizar as culpas e em poucos casos, a minoria, os méritos. Acreditam no livre arbítrio, acreditam que Deus nos dá o direito de fazer o que bem entendermos, acreditam haver destino, mas dizem que os feitos acontecem ‘graças a Deus’! Quando se trata de méritos e conquistas, as pessoas expõem os esforços a todos, levantam pro alto, colocam molduras. Pegam o mérito para si, e não se ouve ‘Graças a Deus’ mas se ouve um simples e nada modesto ‘eu consegui’. Agora quando acontece um acidente causado por outros motivos, não divinos, onde pessoas morrem e outras sobrevivem, vejo os mais religiosos dizendo: ‘graças a Deus que fulano não morreu’. Esse é o mérito atribuído a Deus quando as pessoas são vítimas de desgraças causadas por elas mesmas, quando são vítimas de si e de seus atos sensatos ou não, seja por bebida, por alta velocidade ou por irresponsabilidade. Coisas da vida. Já vi casos de acidentes que a vítima morreu sem ter culpa, sem estar alcoolizado , sem estar em alta velocidade, no entanto outro carro com um motorista alcoolizado e em alta velocidade veio e o atingiu. O motorista alcoolizado não morreu, o outro, sem culpa, morreu. E morreu sofrendo no meio das ferragens, morreu aos poucos, sofreu as dores até não aguentar. E ai? Graças a quem? Graças a Deus que o motorista alcoolizado sobreviveu? Será que Deus teria feito parte disso? Será que houve intervenção divina? Porque parece injusto uma pessoa sem culpa morrer dessa maneira! Isso me faz pensar muito em uma frase do poeta William Ernest Henley em que ele diz I am the master of my fate, I am the captain of my soul.”  Em português: “Sou o senhor do meu destino, sou o comandante da minha alma”. Essa é a verdade em que eu coloco toda a minha fé. Somos humanos, estamos comandando nossa vida, somos responsáveis pelos nossos atos, somos senhores do nosso destino. Ou então não precisaríamos de um dia de juízo final, dia este em que confessaremos todos os nossos pecados e responderemos pelos nossos atos (diz a igreja…). Ser senhor do próprio destino é simplesmente aceitar o posto de dono da própria vida, é se responsabilizar por ela e ter coragem de se responsabilizar pelo rumo que você dá a ela, pela maneira que você a conduz. Porque Deus, infinitamente perfeito, nos confiou a vida! Então temos que aceitá-la e mais que isso, assumi-la. Entender que se os adoslecentes beberam, e mesmo assim dirigiram, e dirigiram em alta velocidade e eventualmente se envolveram em um acidente trágico, que de cinco apenas dois sobreviveram, isso nada mais é que a maneira em que eles estavam conduzindo o carro, e as próprias vidas, naquela noite de sábado. Não tem essa de ‘Graças a Deus’. Nós conduzimos a nossa vida, sem destino e sem ‘Graças a Deus’. Se existe destino não somos livres. Se existe destino, porque então dizem tanto ’Graças a Deus’? Deus é infinitamente mais que isso. Deus confia.  E se alguns agora alegarem, que dizer ‘graças a Deus’ é apenas um modo de falar, que não tem essa carga semântica ao pé da letra, é aí que piora. Na igreja pregam que não pode usar o nome de Deus em vão, então existem muitas pessoas desobedientes. E ontem, eu ouvi dizer que Deus é todo mundo sorrindo ao mesmo tempo. Essa é agora outra verdade em que eu deposito toda minha fé, uma verdade nunca dita na igreja, nunca mencionada por padres e vizinhos. Ah, a igreja e seus ensinamentos! Graças a Deus que eu não vou mais à Igreja!

meu querido Bóris

Você é rei. Não é dono do mundo, mas parece ser. É fingidor, finge que não sabe nada, finge que sabe tudo. Finje que não conspira com o universo, mas eu sei, eu sei da sua verdade. Bóris, eu não te acordaria jamais, eu não tiraria você da cama enquanto você dorme e se você deitar no meio dela eu durmo atravessada, invergada se precisar, mas não te acordo do seu sono, jamais. Se você deitar no sofá, eu sento no chão, mas não te incomodo jamais. Não te acordo porque sei que seu sono é urgente, de quem tem que levantar pra tomar uma água, comer ração e dormir novamente. Sei que isso tudo é muito cansativo. Quando eu te olho, te amo completamente, amo sua cor preta, amo seus olhos. Olhos verdes e profundos, bem mais profundos que o oceano. Bóris, meu gato preto, você só me dá sorte. Rei de si, rei de tudo que está envolta e rei de mim. Rei por conta própria, sem coroas de ouro e sem palácio de cimento. De palácio, tens o corpo e isso é suficiente. Sua coroa é o amor de quem te ama, pra não dizer alma. Eu não te tenho, você é que me tem. Você não compadece com minhas tristezas, nem sente dó, mas sabe sentar do meu lado como um coleguinha de escola. Sabe ser ouvinte, mesmo quando distraído lambendo os pêlos. Sabe ser amigo, sabe ir e voltar. Não te troco por dez humanos. Mesmo que os dez humanos fossem de caráter, não valeria o seu. Também não dou e não vendo, porque não há quem lhe mereça em doação, e não há quantia que pague por você. Gato preto dos olhos verdes, olhos que encaram sem ressentimento, sem medo de meias verdades. Olhos que dizem tudo e não dizem nada. Olhos que sorriem para mim mas debocham da minha espécie, simples humana. O que é que você fez na outra vida, para nascer gato? Foi a Madre Teresa? Foi o Papa João Paulo? Conta pra mim. Eu quero tanto saber. Acho que você não confia. Não, você não confia em ninguém. Faz dengo e mostra afeto, mas não confia em ninguém. Está certo e é perfeito. Eu quero muito ser gato, Bóris. Eu quero muito ser dona de mim.

erros

Conheço pessoas que erram, mas erram pouco, erram pela metade. Erram e nada acontece, justamente porque são erros incompletos. Erros incompletos não levam ninguém a lugar algum, e por serem pela metade, a lição que eles ensinam nunca vem inteira. Por isso, a maioria das pessoas que eu conheço, erram novamente. Vivem errando pequenininho, errando semanalmente, tornando os erros incompletos tão banais, que elas próprias não enxergam o que está errado e por isso não sabem como consertar. Algumas nem percebem que estão errando, tão comum se tornou o ato de errar aos poucos. Por não terem errado completamente, por não terem aprendido uma lição inteira, erram com frequência, de pouquinho em pouquinho. O errar é coisa sempre presente pra quem não aprende lições inteiras. Meus erros foram erros inteiros e completos. Os meus erros foram avassaladores. Já errei e muito, errei completamente, errei de dar nojo, de sentir mal estar ao lembrar das ocasiões erradas. Errei com vontade de errar, errei sem saber que estava errando, errei escondido, errei quando todo mundo me viu errando. Já dei um espetáculo de erros. Errei tanto que hoje, me sinto limpa, me sinto melhor. Errei e por ter errado de verdade, não me sinto constrangida, porque sempre aprendi lições inteiras, lições que hoje sei que foram imensamente maiores que meus erros imensos. E não repito erros. Você só sabe que errou completamente quando depois você acerta. Errar para acertar, é quase isso. Vamos vivendo.

capricho

Como se não bastasse a mania de mencionar carnavais nas coisas que eu escrevo, agora invoquei com ônibus. Isso acontece. Enfim. Entrei no ônibus esses dias e o estava quase vazio, finalmente! Havia apenas um senhor, um velhinho, como sempre digo com todo respeito, porque não acho que ser velhinho seja mal algum, e sei que minha juventude caminha para essa experiência, de ser mais experiente. No Brasil é lei que haja nos ônibus assentos especiais para idosos, obesos , gestantes, e deficiêntes físicos. Bom lembrar que se não fosse lei, não haveria essa distinção. Aqui na minha cidade os ônibus prestam esse serviço, mesmo que precário. Podia ser melhor. O velhinho estava no banco normal, que é duro e com divisórias. Banco normal para jovens e adultos que aguentam a rotina, por bem ou por mal, da escola ou do serviço. E, por o velhinho não estar no lugar especialmente reservado a ele, foi lá que me sentei, e confesso, sempre que tenho oportunidade, é ali mesmo que me sento. No banco especial. Ele ali mais jovem que eu, e eu idosa. Ele recusando os melhores tratamentos e eu optando por eles. Eu, velhinha. Sentei no banco especial e sei que serei deficiente de explicações mais convincentes para argumentar o porque de sentar-me ali. Sento-me porque preciso de um espaço que não tenha divisórias, que acomode inteiramente eu e meu cérebro obeso, obeso de pensamentos ociosos, criativos, benéficos, instantâneos e contraditórios. Sento-me porque sou obesa de explicações que não precisavam existir nem em pensamento, explicações que não precivavam ser dadas a ninguém, no entanto faço isso a todo momento. Obesa, toltalmente acima do peso de tantos pensamentos que se concentram no cérebro formando pneuzinhos de dúvidas que eu nunca farei um abdominal sequer para tirá-los de mim. Porque é disso que sou feita, e assim quero ser o resto da vida. Sento-me lá, no banco especial, porque sou gestante de dúvidas que não param de nascer. Gestante de ideias que descobri há uma semana, ideias de três meses de gestação, outras de nove meses Sou gestante prestes a dar a luz a qualquer momento de dúvidas perfeitamente deficientes, e  por isso únicas. Ah, chega de mentir, me sentei lá porque não tinha mais ninguém. Só por isso. 

gula

Vou ao dentista uma vez ao mês, porque uso aparelho odontológico, e há três anos marco a minha consulta sempre quinta-feira às oito horas da manhã. Não me importo com o dia do mês, isso decido na hora em que vou marcar a consulta e sem algum motivo em especial. Me lembro que no primeiro dia, a consulta foi numa quinta-feira e por saber que tenho memória fraca especifiquei que seria sempre neste mesmo dia da semana. O motivo das consultas serem sempre às oito horas é que antes, quando eu trabalhava, esse horário era favorável, eu podia ir tranquilamente ao dentista e chegar ao serviço pontualmente Agora, o motivo de ter continuado às oito horas até hoje, que não estou trabalhando, eu desconheço. Talvez costume. Pois bem. Hoje, quatorze de julho de 2011, quinta feira, levantei cedo como sempre, para ir ao dentista. Achei que hoje era o dia em que eu, finalmente, tiraria essa coisa metálica dos meus dentes, e por isso estava com a feição menos pior do que a dos dias que acordei cedo apenas para trocar os elásticos. Cheguei ao dentista e não tirei o aparelho, o que me fez ficar um pouco atordoada, mas sai de lá e fui em direção ao ponto de ônibus para voltar pra casa. No meio do caminho me lembrei que eu tinha uma nota de vinte reais, e os cobradores de ônibus aqui da minha cidade estão alertados a não aceitarem valores maiores que dez reais. Então fui em direção ao supermercado com o intuito de comprar qualquer coisa, receber o troco e voltar para casa. Eu queria muito voltar para casa, era muito cedo, o sol ainda não tinha acordado direito e estava frio. Além disso, eu não tinha tirado o aparelho e por isso estava emburrada. No supermercado, pensei em comprar algo para comer, mas não havia nada que eu quisesse comer, no meio de tanta variedade. Tudo que eu olhava me causava uma sensação de estômago cheio. Na verdade, nem tomo café de manhã. De repente, em uma das prateleiras do supermercado, encontrei algo que me deu água na boca. Meus olhos saltitaram. Não sabia nem para qual deles eu olhava, tinha de várias cores. Me deu vontade de comer, parecia muito gostoso. Comecei a salivar muito. Eu tinha que comprar, mas não ia conseguir comprar um só, então decidi que compraria dois. Assim saciaria a vontade. Não teria todos de imediato mas também não teria um só! Os outros eu podia esperar e comprar depois. ’Consumista, vítima da televisão!’, pensava eu enquanto escolhia, mas ignorava um segundo depois, porque aquilo me cegava o cérebro, eu naquele momento, precisava daquilo, vida ou morte. Aquelas coisinhas deliciosas, coloridinhas, embaladas e fresquinhas! Escolher que foi difícil porque eram embalados, não dava pra sentir o cheiro e eu estava com pressa porque tinha que pegar ônibus. Não consigo escolher nada com pressa, não consigo agir sobre pressão, mas cheguei a um consenso: optei escolher pela cor. Pensei ‘O marrom, chocolate, chocolate, chocolateeeeeee!’ e foi o primeiro que escolhi. Depois o roxo! O roxo parecia uva! ‘Uvas, eu amo uvas uvas uvas uvas! Que delícia!’ E pensar em chocolate e uvas naquele momento não me deu mal estar nenhum. Passei no caixa, paguei, e peguei o troco. A moça colocou minha compra na sacolinha. Sacolinha tão transparente e fina, que se eu tivesse comprado um saquinho de arroz ela não aguentaria. Isso fazia com que qualquer um que olhasse para a minha sacolinha, pudesse ver o que eu comprei. Mas não me importei, afinal não era um absorvente, não havia motivo para constrangimentos. Saí do supermercado então com tudo que precisava: o troco e a sacolinha. Por um momento pensei ‘Consumista, você não precisava disso!’ mas ao lembrar que era um produto que não ia engordar, despensei. Cheguei no ponto de ônibus e lá estavam eu e minha sacolinha apenas. O ônibus veio e eu entrei. Percebi que muitos olhos olharam para a minha sacolinha, quando entrei no ônibus. Olhos murchos de quem estava indo trabalhar,a final estava muito cedo, e nesse horário os ônibus lotam de trabalhadores. Eu ali, desempregada, com a sacolinha na mão entrando no ônibus. Eu estava de bota, não por vaidade, mas porque tinha saído na noite anterior, e de manhã coloquei exatamente a mesma roupa e sapato que tinha colocado para sair, por pressa. E, se num ônibus em que o trajeto é oposto ao centro da cidade, o ônibus estava cheio de pessoas que trabalhavam em fábrica. E eu ali de botas, sem serviço. Me senti um pouco estranha, mas isso as minhas botas não foram o motivo dos olhares mais alfinetantes que eu já levei na vida. Olhares femininos. O motivo foi a minha sacolinha de compra. Eu já não via a hora de descer daquele ônibus e fugir de todos os olhares, de arrancar minha sacolinha daquele ônibus. Algumas mulheres pareciam consumir o que eu tinha comprado, apenas com o olhar. O que eu havia comprado no supermercado, depois de ter me emburrado no dentista, me deixou tão ansiosa para chegar em casa. Eu tinha acabado de comprar  uma coisa deliciosa, que me dava água na boca só de pensar. Mas poxa vida, que mal tem uma mulher comprar esmaltes?

popular

Se te faz mal, não desenterre. Discutir o passado é fazê-lo presente, é mais que isso, é querê-lo presente. Portanto se tiver lembranças que sejam as boas. Falar do passado é como mecher em roupas de defunto: sobe o cheiro da pessoa que já se foi, levanta poeira, te faz reviver, te faz sentir tudo de novo e no fim você vê que ela não está mais ali, e que essa é uma verdade imutável, como o passado é. Passado é passado, é pedra atirada que não volta para a mão, é igual palavra, uma vez que sai da boca não há como voltar a ser somente um pensamento.  Portanto esqueça, continue vivendo. O passado não será mudado, portanto não compensa ser questionado. Do passado use a apenas a lição, e no presente molde suas ações. Faça isso. Futuramente quando pensares no que viveu você terá a sensação não de passado imutável mas de lembranças presentes. Lembranças presentes que lhe remetem às lições. Lições que moldam seu presente para que você chegue ao melhor que pode ser, no futuro. E o melhor, sem arrependimentos.

ah, se eu fosse passarinho

As pessoas querem ser livres




Cantam aos quatro cantos -liberdade!



-as asas que não têm.



-



Querem ter asas, querem ser livres.



Gostariam de ser passarinhos.



Gritariam ao mundo que têm asas



mas seriam passarinhos de gaiola,



passarinhos dos mesmo cantos



sem vitória.



-



É mais seguro



tem alpiste e sombra,



não tem predador nem chuva,



tem mamão fresco e olhares.



-



A morte certa que um dia vem



para nós humanos de todas as formas,



para os passarinhos de gaiola



seria de velhice.



-



Ah vida longa!



Mas que vida?



-



Ah se eu fosse passarinho…



Meu canto seria outro,



de lá de cima da árvore



acordaria a vizinhança,



incomodaria as minhocas,



atrapalharia o fluxo das formigas.



-



Me perderia do grupo



Encontraria outro



talvez para ser líder



talvez pra me perder de novo,



até encontrar o meu lugar



até me encontrar.



-



Não teria rota



Não teria rumo



Abandonaria trajetórias impostas



e voaria sozinha pra me conhecer.



-



Ah se eu fosse passarinho…



voaria alto,



voaria longe,



voaria baixo,



tomaria banho na areia,



e se a morte certa que um dia vem



quisesse me levar



eu poderia morrer na boca do gato



eu poderia morrer de pedrada de estilingue



mas feliz morreria por de ter vivido sem limite.



-



Ah vida dura!



Isso é vida!

adiamento

Silêncio. Aquele sonho barulhento que me fazia querer tampar os ouvidos só de pensar e de tão turbulento me fazia agarrar às coisas próximas pra me manter em pé, pra manter os pés no chão, agora é possível. Aquele sonho que me fazia pisar no acelerador. Aquele sonho que me causou tantas ânsias de vontade, que me fez transpirar de ansiedade, agora pode virar realidade. Tudo que eu sempre sonhei a um passo de mim e eu ainda não peguei, não aceitei, não disse sim. Eu que sempre inventei maneiras pra tornar isso possível, que por tantas vezes passei dias planejando quando tudo ainda era tão distante de se tornar realidade, só pra sentir o gosto daquilo que ainda não tinha, só para alimentar o desejo com a paciência e agora, justo agora que eu posso ir embora, quero ficar mais um pouquinho. Justo agora que posso acabar com as ânsias e posso desacelerar, justamente agora que posso me desagarrar das coisas próximas e posso destampar os ouvidos, não quero ir. Estou tentando decidir o que fazer por mim. Estou tentanto esclarecer o desinteresse súbito por aquilo que eu, meses atrás, faria qualquer coisa para tornar realidade. Vou adiar o sonho. Adiar o que a meses atrás era urgência, caso de vida ou morte, ar para os pulmões dos sonhos mais sonhados. Vou adiar pra deixar o que surgiu acontecer.

são pedro I

Fazia algum tempo, aliás, anos, que eu já não pegava ônibus no horário de pico, o horário em que os alunos voltam pra casa, os trabalhadores estão indo almoçar e os ônibus estão sempre lotados, por esses motivos. E foi ontem que eu me lembrei de quando era estudante de ginásio. Já fazem quarto anos que eu me formei e nunca mais preguei ônibus neste horário. Quando avistei o ônibus que vinha, notei que não era o que eu costumo pegar para chegar em casa eventualmente em alguma ida ao centro da cidade, mas me lembrei que era o que eu pegava na época de estudante. Um ônibus que até passa perto da minha casa, mas ele não é desses ônibus comuns, é um ônibus específico para as áreas rurais, então ele passa somente em três horários no dia, para levar e buscar pessoas que moram nessas localidades. É um ônibus com cheiro de terra, que o chão dele costuma sempre estar alaranjado de chão de roça. Um ônibus super lotado de idosos ainda trabalhadores, de idosas que vão ao centro acredito que apenas para fazer compras no supermercado, das coisas que nao podem ser plantadas, e também super lotados de mães jovens casadas, com seus filhos, provavelmente indo ao médico, acredito eu… Lotado de pessoas simples, desprovidas de vaidade,  umas por serem realmente simples, outras por não terem condição. Não há cor que chame atenção, não há adolescentes com celulares nas mãos e nem nada do que se vê na televisão. Me lembro que uma vez, havia um senhor com uma inchada na mão dentro do ônibus. Geralmente, o ônibus cheio de pessoas típicas de roça. Como eu sabia que ele passaria perto da minha casa, peguei.  E ao entrar nele tive a impressão de ter pego aquele ônibus pela última vez no dia seguinte, uma cena que se repetiu por tanto tempo, ali, depois de quatro anos, eu estava vivendo novamente. A senhora e sua filha, as mesmas de quatro anos atrás. Senhora forte, alta e robusta, com a genética boa, deve ter lá seus 65 anos de idade, estava ali firme e forte, segurando sacolas, sem um fio de cabelo branco na cabeça, sem um espaço no rosto em que não houvesse rugas. Talvez, rugas de cansaço, rugas do tempo. Parecia mãe de primeira viagem, de atenção redobrada, de olhos que tudo vêem. Sua filha, a mesma coisa, grande e robusta, e ainda, depois de quatro anos, estudante usando o mesmo uniforme. Estudante da escola para deficientes. Sua mãe com a mesma leveza no olhar, de vida conformada, de vida que não pode mudar nem ser diferente. Levando a vida que ela terá de levar até o fim, até aguentar, até não poder mais. Escondendo o medo da morte, talvez nem pensando nisso, tanto é o medo que ela deve sentir de morrer e sua filha ficar aqui, sem seus cuidados. Aos seus sessenta e poucos anos de idade, era pra ser apenas uma idosa cheia de problemas de saúde, no entanto é ainda mãe jovem, pois precisa cuidar da sua filha até o fim de sua vida. Na verdade é uma idosa, pode ter problemas de saúde e dificuldades, mas no cumprimento do seu dever de mãe, parece ser tão forte e saudável quanto a filha, em questão de saúde. A mesma mãe de quatro anos atrás, a mesma rotina, a mesma luta. E quando sua filha apontou algo na rua para mostrar, porque não sabe falar, ela olhou e sorriu, com o mesmo sorriso de quatro anos atrás. Eu que por tantas vezes, não tive estrutura para lidar com situações em que tive de ter metade da responsabilidade que essa senhora carrega sozinha nas costas durante esses anos todos, me senti sem voz, me senti paralisada. Como se aquilo fosse um balde de água fria no dia mais frio do ano, sendo jogado no meu corpo, nu. Foi como se eu pudesse me chocar com uma realidade realmente difícil, que as minhas lástimas de ontem tivessem virado piada naquele momento, como se meus medos fossem os medos mais infantis que já pudessem ter existido, como se as minhas dúvidas tivessem virado apenas mais umas gramas de terra alaranjada no chão daquele ônibus.

são pedro II

Não havia lugar para sentar no ônibus então eu estava de pé, me apoiando no banco da frente. Neste banco, dois senhores estavam sentados e conversando. Velhinhos, enrrugados, sofridos. Com mãos cansadas, chapéis sujos, unhas compridas. Usavam roupas limpas, mas roupas surradas, surradas do tempo. E conversavam como adolescentes. Falavam de coisas que eu não consegui ouvir, tanto que meus olhos estavam observando os detalhes. Tinham sacolas no meio das pernas, provavelmente tinham ido ao centro da cidade comprar alguma coisa. Eu percebi isso não só pelas sacolas mas pelas roupas vincadas. Por mais que usassem roupas velhas, as roupas limpas e vincadas mostravam que não era situação para relaxo. Era como se ir ao centro da cidade fosse algo que merecesse boa aparência. Era como se eles estivessem vestidos para não causarem má impressão. Talvez até vestidos para serem melhor atendidos nas lojas, para não sofrerem preconceito. Pois são aparentemente, pessoas muito simples. Eles conversavam e estavam aparentemente felizes, como se andar de ônibus não fosse ruim, como se morar longe não fosse incômodo, como se a situação atual da vida deles naquele momento fosse tudo que eles tivessem almejado, como se tudo tivesse saido como planejado. Estavam ali naquele ônibus como se estivessem no recreio da escola, como se aquele momento fosse uma pausa para a rotina árdua. De repente, um deles tirou da sacola o que havia comprado, e exibiu ao outro como se fosse um troféu. Era um enfeite para casa, um enfeite como se ele não precisasse gastar o dinheiro com outras prioridades. Era um quadro, com a imagem de Nossa Senhora. Um quadro de plástico, com cores estravagantes. A imagem do quadro era de papel colado, mas estava envolto com plástico para não estragar. Notei que era daqueles quadros que a imagem está até falha de quando a tinta da impressora começa a acabar e começa a substituir tons de vermelho por amarelho, e azul por verde, tantas são as cópias que são feitas para serem coladas em suportes de plásticos e serem vendidas nas lojas de 1,99. Coisa simplória. Enfeite. Símbolo de fé e devoção. Ele disse ‘oh qui lindo’, e o outro respondeu ‘oia qui lindo, once comprô?’ e o resto da conversa eu já não pude ouvir, porque entrei em conflito com meus pensamentos. E novamente dentro desse ônibus, senti um leque de sentimentos. Eu tão sem fé que cheguei até a me perguntar o porquê de escrever Nossa Senhora com letras maiúsculas ali em cima. Eu tão sem fé. Creio que acharia tudo isso, desde o andar de ônibus até as roupas velhas, mesmo que vincadas, uma desgraça. Creio que nessa situação, não ficaria de sorrisos dentro do ônibus, não teria brilho algum nos olhos. Não compraria enfeite. Não teria a fé que ele tem. Acho que nem teria fé. Ele estava visivelmente feliz, com tudo isso. E eu por muito menos, já reclamei dessa vida. Esses dois senhores são donos de uma simplicidade que me comove inteiramente, uma simplicidade que eu não consigo ter, mas consigo perceber nas pessoas. Não sou rica, dependo de ônibus para ir e vir, moro longe, já passei dificuldades, mas talvez para as pessoas menos pensantes que eu, passei impressões. Visto roupas novas, como se não tivesse contas para pagar. Sou bem atendida em lojas mesmo quando estou de chinelo, lojas que eu não poderia nem entrar, nem passar na porta, se eu pensar nas minhas prioridades. Eu naquele ônibus vestindo roupas novas e limpas, com a unha cortada, no meio de pessoas desprovidas de vaidade, eu era a digna de dó. Eu naquele ônibus, visivelmente a mais pobre, de espírito. E pra falar a verdade nem sei como terminar esse texto. Sei que desci do ônibus com outra concepção, afinal, se eu pude enxergar alguns dos meus defeitos ontem, hoje já não os tenho mais. Tenho outros claro, que notarei daqui a pouco ou amanhã, ou depois de amanhã. Mas mudarei o mais rápido possível.

habitat

Começamos a observar o aquário. Os peixinhos estavam naquele ambiente não natural, mas agindo como peixes. Normais. Alguns pares de peixes e um pequeno cardume. Fêmeas e machos. Eles nadavam normalmente, naturalmente, levemente, eu digo assim, como peixinhos no mar. E o pequeno cardume parecia um cardume, eu digo assim, um cardume de verdade, não de espécie comprada mas de espécie reproduzida no mar. E não havia som algum, eu digo assim, não havia som que nós pudéssemos ouvir. E parecia não haver comunicação, eu digo assim, comunicação que nos fosse perceptível. Haviam apenas olhos estalados, olhos que não devem ser somente olhos, eu digo assim, devem ser muito mais que olhos, olhos que falam sem voz. E mesmo sem som algum, sem presidente da república nem rei, sem leis nem normas, sem classes sociais, estava tudo hierárquico, eu digo assim, havia uma certa ordem sincrônica. O cardume sendo cardume, os pares sendo pares. Cada um no seu lugar. Machos e fêmeas, nenhuma voz. Havia entre eles um respeito sem que ninguém precisasse pedir, sem que isso precisasse ser imposto. Isso porque os olhos dizem mais do que a boca pode dizer, porque a boca perto dos olhos é desnecessária. Desconfio que os peixes e seus olhos não sabem da existência do mal e das coisas ruins. Talvez isso explique a perfeição daquela paz.

desperdício

Você está lá tomando seu banho, lavando seu cabelo usando um shampoo e está tudo bem. Você sabe que embora tenha que dar uns trancos no shampoo, se fizer isso a quantidade será suficiente para lavar o seu cabelo perfeitamente. Você se dá conta que o shampoo está quase acabando e então coloca ele no canto do box, porque acha uma chatisse ter que fazer o resto do shampoo sair, e também porque você sabe que tem um shampoo novinho na prateleira. Aí você pega o shampoo novo, cheio, que você mal precisa apertar e sai aquela quantidade enorme de shampoo, que escorre da sua mão para o braço, uma quantidade tão grande, muito mais do que você precisa, mais do que suficiente para lavar o cabelo que você precisa até fazer uma sucção. Mas você se sente bem, lava o cabelo, sem miséria, se esbanja de espuma, sem esforço, porque sabe que tem bastante shampoo, sabe que tem mais do que o necessário. Esse shampoo novo é shampoo ainda para dias e dias. E ainda mais, todo mundo fala que esse shampoo é bom, e você sabe que todo mundo está falando isso então você também quer usar, quer dar sua opnião. O shampoo que passa na propaganda da novela das oito. Até que esse shampoo, como o que você havia descartado e colocado no canto do box, começa a acabar também com o passar dos dias. Então você começa a se preocupar, a racionalizar, porque esse shampoo também está acabando. Olha para o canto do box e certifica que o shampoo antigo ainda está ali para te salvar no momento de necessidade, olha pra ele pensando que ali ainda tem o que você precisa, pouco, mas tem. Sabe que ali ainda tem shampoo, só não é o shampoo que você quer no momento. Nos próximos dias continua a usar o outro, acrescenta água faz render até o fim, mas ele não lava mais o seu cabelo. E acaba. O shampoo novo acaba-se totalmente. O shampoo novo, da embalagem bonita que não serve mais, pois está vazio. Você se volta novamente para o canto do box, que ali estava dias e dias, esperando talvez para ser usado, e pensa “ainda bem que tenho esse aqui”. Respira aliviadamente. De repente você nota que ele está vazio, completamente vazio, e se desespera totalmente porque você precisa dele naquele momento, seu cabelo já está molhado. Alguém usou antes que você pudesse usar. Alguém notou o shampoo do canto do box antes que você pudesse voltar a querê-lo. Você se vê sem o shampoo novo, e sem o shampoo do canto do box. E pensa que tudo que você mais precisa naquele momento era aquele shampoo, aquela quantidade pouca que havia no shampoo do canto do box, e percebe tardiamente que aquela quantidade seria o suficiente para você. E você não precisaria de mais nada para ter um cabelo limpo, e até cheiroso. E nota, tardiamente, que o shampoo nem precisaria ser o da embalagem mais bonita, o do preço nem o do preço mais alto. Aí você vê a falta que faz um shampoo.




Situação corriqueira. Shampoos, pessoas. Pessoas, shampoos. E é só isso mesmo.

otiositate

Estou sofrendo com esse defeito




De sempre querer saber mais do que o filme mostrou



De sempre querer ir além do que o jornalista falou







Estou sofrendo de insuficiência



Insuficiência daquilo que tenho em excesso



Daquilo que já expresso



Por meio de textos ou versos







Estou com uma ânsia de mim



Que me faz querer chorar



Que me faz querer morrer







Sinto um tédio sem bula



Sinto uma tristeza sem cura



Estou entupida de amargura



Quem dera fosse frescura…







E hoje o céu está cinza



As nuvens estão tão pesadas



Eu sei que triste estaria



Nem que as mãos não estivessem atadas



Nem que hoje não fosse segunda



Nem que a tristeza não fosse profunda…







Ainda tenho uma semana inteira



Para ser, estar e correr



De todos os olhos que me julgam



De todos que da minha paciência abusam







Ainda tenho uma semana inteira



Pra acordar como se não tivesse dormido



Dormir como se não fosse acordar



Pra sonhar como se não tivesse sofrido



E sofrer como se não pudesse sonhar







A alegria eu procuro com a pinça



Nas palavras ou nas entrelinhas



procuro sem perspectiva, confesso



Porque, para mim, encontrar a alegria



Nesse ócio obsoleto



É como procurar pulga



Em gato preto.

tédio

Inevitável tédio que me cerca




Tristeza que me consome



De não ter feito e não ter dito



O contrário do que eu fiz e disse



Só hoje, devagarinho eu sei



O contrário das minhas ações passadas



Das palavras faladas



Das atitudes tomadas



Poderiam dar-me o presente



Uma vida inconsequente



Um presente diferente



Que nem as nuvens que cobrem o céu



Cinzas e pesadas



Não poderiam tirar-me



Nem se mãos tivessem,



Nem se hoje não fosse segunda,



A alegria do momento



Daquilo que poderia ter sido



Daquilo que hoje nunca pode ser



Tanto foi a falta do contrário



O medo do desconhecido



O pavor da não certeza



O medo do improvável



Agora vivo a lamentável



Culpa de mim.

sperantia

Se eu fosse menos atenta não teria percebido. Vi que ele tirou da gaveta os bilhetes antigos da mega sena e começou a fazer equações ilusórias, alusões irrisórias e teorias cósmicas. Pegou uma folha, uma régua, adicionou números aleatórios, riscou outros, traçou linhas, fez uma tabela. Procurou a combinação nas datas de aniversário, nos fatos passados e nos anos pra tentar encontrar o número, o bendito número que pode torná-lo dono dos 72 milhões de reais acumulados. Achou os números, depositou a fé, guardou a folha na gaveta e foi sentar-se no sofá como se não tivesse acabado de sonhar, como se não tivesse acabado de voltar de uma viagem longa e espacial. Sentou-se no sofá como se não tivesse acabado de planejar o resto da sua vida, da vida das filhas e dos netos e bisnetos que virão. Brincou com a filha caçula como se fosse um rei, um rei nas horas vagas de lazer e luxo. Não olhou para a televisão. Não notou que eu estava descalça. Não acordou o gato que dormia no sofá. Não gritou. Apenas sorriu. E por isso eu não me importo em saber se os 72 milhões nos fariam mais felizes, ou nos fariam família, ou mais família, só me refiro à esperança que pairou. Esperança irrepartível, irreplegível, irreplicável e irrepreensível.

absentia

O sinal acabou de bater. São exatamente 21:50. Eu ainda tenho que ficar na faculdade até 22:40 pra cumprir a carga horária, pra mostrar assiduidade, pra não levar falta em uma aula que eu, definitivamente, não estou presente. Já houve dias em que eu não fui à aula mas fui pro alto do morro, sentei na grama, fiquei olhando pro céu, pras estrelas, pras pessoas, observei a cidade e aprendi demais. Aprendo mais de filosofia com o barulho do vento quando ele sopra forte, lá de cima, do que com a voz da professora. Aquela voz de quem fuma desde os 13 anos de idade, há três vidas seguidas. Aprendo muito mais de concordância quando vejo o anoitecer desde quando aparece a primeira estrela, depois aparece a segunda, a terceira… Aí vejo estrelas. Coletivo: constelação. Aprendo Linguística Histórica conversando com o rapaz que me faz bem, ouvindo seus dialetos, suas gírias, percebendo as variações e a estranheza do sentimento linguístico. É pouco provável que fora da faculdade eu fale de Saussure e de Benveniste. Mas prefiro deixá-los descansando em paz, ao lado do nosso Deus Pai Todo Poderoso. E espero que eles estejam lá mesmo. Até porque a partir dessa semana, me baseando em outros problemas que tive, não quero falar de terceiros. Nem pro bem, nem pro mal. Ainda mais se os terceiros já estiverem em outro plano. (Paulo Freire, você está incluso nessa). Ou seja, fiz um texto, passei o tempo, treinei a escrita, forcei o pensamento, falei das matérias, lembrei das coisas que aprendi e não levarei falta. Pegarei o ônibus daqui a pouco, chegarei em casa, pedirei a bênção pros meus pais e dormirei. Não me sinto estudante, tampouco escritora. Não me sinto nada e por isso me aceito como tal. Cumpri a carga horária, as normas da instituição e as vontades alheias com êxito. Esta é a conclusão à qual cheguei: as pessoas mais descontentes do mundo são as pessoas que no final do dia não sentem a sensação de ‘dever cumprido’. Presente professora!

patriotice

Quando eu for praquele lugar realizar meu sonho, o meu sonho inquieto de simplesmente estar, aí sim serei feliz. Vou conhecer a dona, aquela que já está tatuada em mim. Vou encontrá-la na chegada e viveremos então juntas para sempre. Só com ela serei eu mesma, no físico e no abstrato, até que a minha matéria aguente, até que minha alma não possa mais ser alma de uma pessoa só ou esteja condenada a não ser mais de ninguém. Até o limite, eu serei eu. Vou passar o resto dos meus dias não vendo o tempo nem ponteiros de relógio, não vendo o cabelo crescer, não vendo a mudança das estações e não encontrando pessoas voltando, enquanto eu estou indo. Eu vou viver de verdade, sorrir e chorar uma vida com liberdade, com suor e esforço, com medo e pedras no caminho, com regozijos no começo no meio ou no fim de coisas que ainda não sei… De coisas que só serão possíveis lá, naquele lugar. Se chegar ao fundo do poço tomo a água ou lavo o rosto, mas desistir eu não desisto. Porque sei que lá serei feliz, e quem sabe lá, no fim dos meus dias terei a sensação de que passei as melhores alegrias de uma vida e passei dificuldades, mas enfrentei tudo como um bicho selvagem, como em uma partida decisiva de futebol AMERICANO e por isso venci. Dever cumprido. Essas mãos que hoje estão atadas, não mais estarão e com elas vou erguer a taça da minha vida pros céus, vou sorrir e agradecer profundamente ‘oh Deus essa é a historia que eu fiz pro senhor, posso entrar?’

recomeço

De todas as pessoas que eu já conheci, você, foi a que mais me fez sonhar. Quando te vi, sonhei com você. Quando falei com você, sonhei em te ter. Quando namorávamos, sonhei com o nosso casamento, sonhei com filhos e casa. Matei sonhos antigos! Sonhei com um futuro para nós, sonhei que seríamos um par, sonhei que seríamos um só. Sonhei tanto que me distanciei, sem perceber! Até o dia que você, por distração, me traiu. Então sonhei que era mentira. Quando te perdoei, sonhei que perdoei de verdade. Quando finji que tudo estava normal, sonhei que era feliz! E depois disso sempre que eu sorria, sonhava com o meu sorriso sincero, com o sorriso que eu não sabia mais… Sorrir. Quando você me cobriu de presentes, sonhei em ter o que estava na vitrine. Você me levou pra cidade vizinha, sonhei com avião, com passaporte, malas e bagagens. Sonhei com compras, inutilidades. Sonhei com coisas mais passageiras do que a minha própria vida, coisas que hoje nem sei o que são. Sonhei com coisas que jamais teria sonhado, não fosse pela cegueira que me causou. Você como sempre me distraiu e eu me conformei. Com o tempo misturamos tudo. Misturamos nossas vidas, misturamos as mágoas com os novos planos, misturamos o passado com o presente, e em outras ocasiões conseguimos sorrir chorando. Tudo ficou tão homogêneo que eu não sabia mais identificar as coisas. A traição antiga já não era mais desculpa, caso eu quisesse um motivo. Os momentos bons que ainda conseguíamos ter não eram mais suficientes, eram efêmeros. Ficamos inertes, ficamos juntos e separados e sorriamos e chorávamos. Aquele dia que você me acordou (pra realidade) eu sonhava. Sonhava que já estava tão longe de mim quanto de ti, e você foi-se embora.  Pude ver que estava em terra firme novamente e que podia caminhar. Podia até cair em buracos ou tropeçar em pedras,  mas isso não seria mais previsível, seria coisa da vida, e viver é bom. Você foi-se embora, as tristezas passaram e os problemas foram junto. Confesso que fiquei sem um segundo plano, mas sei que este não seria mais grandioso do que o meu segundo sonho. Não, não é.

comparescere

O mais perto que cheguei de coisa alguma, a melhor sensação que tive de sei lá o quê, o maior compromisso que assumi com o descompromisso. Desordem arrumada, fumaça dissipada, vagas horas ocupadas com você. Quero você aqui ou ali, na hora que der. Quero você aqui quando você quiser ou ali quando eu puder. Porque eu já quero. Agora que é a calma que me conduz pra lugar nenhum e pra qualquer lugar não tenho relógio, nem pressa com você, apenas tenho hora pra voltar pra casa. Estou feliz, porque eu, eu só quero sorrisos e isso é tudo que você me dá sem gastar nada, sem cobrar tudo. De certa forma, a fórmula certa, do nada que me completa, do tudo que não me interessa, mas faz bem.

austeru

Sexta-feira passada decidi mudar minha vida. Prometi que quando chegasse segunda-feira eu ia mudar tudo, e incluia nos meus planos conseguir um estágio e resolver pendências. Incluia também pagar as contas e carregar o cartão de ônibus. Prometi que enquanto estivesse em casa ajudaria mais a minha mãe, buscaria a minha irmã da escola e leria mais uns capítulos do livro de cabeceira. Segunda foi-se há três dias. Nada fiz. Procurar um estágio exige uma coragem de mim, a coragem que eu não tive pra levantar da cama na segunda por exemplo, e ainda não tenho. Então, fiquei doente na segunda-feira. Lá pelas onze horas da manhã percebi os sintomas que os anticorpos não perceberam. Aí abusei de mim. Inventei barreiras. A temperatura caiu, e eu tremia. A garganta inflamou. A voz ficou rouca, e de repente sumiu. Os rins mandaram notícias e senti muitas dores. Dona de mim. Fiquei doente, fiquei de cama. Dona de mim, amontoei doenças, fugi covardemente das responsabilidades. Terça e quarta minha mãe cuidou de mim e deu remédio, e não foi xarope, foi antibiótico. Filhos com 21 anos curam-se sozinhos das gripes e resfriados. Mas eu estava muito mal, me desculpe. Não pude melhorar, então sofri de dor de cabeça também. Eu poderia adoecer mais um pouco, mas as enfermidades citadas foram suficientes.  E nada disso é mentira. Tudo mais pura verdade, porque eu não sei fingir. Eu fujo mas não finjo, invento pra doer, pra ser real, pra ter caretas, desmaios, ânsias, vômitos, falta de ar, falta de apetite, intoxicação, e ambulância na porta de casa se precisar.  Da cama eu não saí. Essa semana não resolvi nada. Mudei de planos, ora. Hoje já é quinta-feira então o melhor que faço é esperar a sexta e o final de semana passar, pra esperar a segunda e deixar tudo como segunda opção. Segunda-feira eu resolvo minha vida.

argumentu

Os artistas têm olhos que enxergam o céu em grão de arroz. Têm olhos com asas que voam mais alto que qualquer espaçonave já possa ter ido, além planeta, além sistemas e galáxias, bem perto de Deus. Têm olhos que cultivam toda a beleza do mundo, olhos que valorizam a vida ao máximo, no mínimo. Têm olhos capazes de absorver todos os sentimentos e transformá-los em uma coisa única e bela. Os artistas têm olhos tranformadores, olhos que têm olhos, ouvidos, tato, paladar. Olhos que são mais que olhos banais, olhos humanos. E isso não tem nada a ver com língua, classe-social ou raça. Nem com roupa, nem com marca, nem com etiqueta, nem com bonés, nem com chinelos, nem com problemas vitais e possíveis vidas passadas. Isso não tem nada ‘a ver’, a não ser com olhos banais. Isso é dom, meu bem…

protesto pessoal

Por quantas vezes, ingrata, me peguei desejando que quando eu olhasse para uma pedra eu enxergasse apenas uma pedra. Coisa dura, fria. Queria ser cabeça de dicionário, enxergar o que é e ponto, sem metáforas. Queria que meus pensamentos não tivessem asas e que as palavras que eu escrevo não fossem macias e doces, pois essa é a impressão que tenho e sou viciada. Teria até feito prece, mas não sabia a quem e não havia maneira cabível de fazê-la sem mostrar a ingratidão que me aflingia. Angustiada de ter outros pontos de vista, embora algumas vezes encontrasse pessoas que compactuassem com eles, a minoria. Vai saber quem é que me atribuiu tal coisa, tal coisa que não ouso falar. Então preferi desejar, pra ser mais branda, e fui tão branda que hoje quando vi uma pedra fiz poeminha. Bom, cumpro a cina… que seja então feita a sua vontade, sensível sensibilidade artística e poética. Guardo os olhos de borboleta, cor, vida e asas, para fazer pensamentos virarem palavras amigas. Faço poeminhas.