segunda-feira, 15 de agosto de 2011

mãe

Naquela manhã éramos apenas nós duas, nossas bolsas, o cansaço de sempre, um saco ração nas minhas mãos, meus planos todos me circulando, os olhares compreensivos dela para mim, o meu olhar sempre cabisbaixo para ela, uma pasta com meus papéis burocráticos nas mãos dela, nossas esperanças, e duas sacolas, uma que comportava dois livros que ela tinha acabado de comprar para mim, no sebo ali perto do rio, e a outra que comportava uma saboneteira e uma escovinha de limpar banheiro, compradas na loja do Cardoso; dentro desta sacola havia outra sacola com um brócolis ninja, brócolis japonês, o nosso desejo do dia. Colocar sacolas dentro de sacolas, é uma coisa normalíssima para nós que não gostamos de carregar mais que três sacolas- isso quando não colocamos sacolas dentro de sacolas e depois colocamos na bolsa, para andarmos com as mãos livres, porque é maravilhoso poder gesticular. Ela me perguntava todo momento se eu estava com sede, se eu queria que ela comprasse um copo de água. Sentamos para esperar o ônibus, nós todos. Mas eu e ela éramos as protagonistas, os outros citados, coadjuvantes. Tantos carros passavam, tantas pessoas passavam, tantas pernas andavam e uma barulheira de mundo, de confusão, de corrida, de pressa, de apelo social, e nosso ônibus não vinha. Quando meu sonho, que depositei todas as fichas e fé, voltou-se a mim eu quiz chorar, e logo deitei minha cabeça no ombro dela. Peco pelo excesso, e por acreditar que minhas vontades são urgências urgentes. Passou. Quando o ônibus veio, entramos e sentamos, mas logo na próxima parada, uma mulher entrou com seu neném e levantamos do banco para dar a ela um lugar para sentar. Fomos educadas e sensatas, já essa mulher não foi não. Ao invés de colocar a filha no colo, e dar um lugar a uma de nós, ela sentou-se e colocou sua filha no outro banco, sua filha que de tão pequena talvez até preferisse sentar no colo da mãe, porque eu quando era criança ia preferir isso, acho que todas crianças preferem isso. Eu se pudesse entraria dentro da minha mãe, e ainda creio que amaria lotação de ônibus para poder sentar no colo da minha mãe, ficar apertada no colo dela, grudada nela, bem perto dela, sentindo seu cheiro, ouvindo seu coração batendo, brincando com os pelinhos do seu braço. Com certeza ela me sentaria no seu colo para dar lugar a outra pessoa, não tenho dúvidas. Mas em pé ficamos, minha mãe nem percebeu, isso foi coisa da minha cabeça, porque eu queria que ela se sentasse. Imagina se o motorista freia e minha mãe cai? - pensei. Não há coisa que compadece mais meu coração do  que ver minha mãe cair ou tropeçar. Até mesmo saber que ela caiu ou tropeçou me dói, parece a pior das sensações, e ao mesmo tempo engraçada, coisa fragilíssima, me sinto incapaz, é como se eu fosse a mãe, e por isso entendo porque algumas mães brigam com os coleguinhas de escola do filho por causa de uma borracha ou empurrão  que seja, porque viram bicho pior, de tanto que querem proteger.  Ali mesmo trocamos umas palavras, olhamos no relógio e estava tudo bem. Adiante o ônibus esvaziou e nos sentamos. Não é comum trocarmos carinhos, mas ela acariciou o meu cabelo, e depois me abraçou. Quando deitei a cabeça no colo dela, ela me envolveu com seu braço, que o outro braço segurava minha pasta burocrática (a pasta que eu me recuso a carregar). Sua mão leve, branda, porque as mãos quando acariciam não se contentam em tocar, ficam se movimentando, apertando, os dedos se levantam e se abaixam sincronicamente e era como se ela me desse tapinhas, e sabemos que isso é de amor, como se as mãos falassem ‘filha eu estou aqui, respira’. E sem que eu tivesse falado do medo do fracasso, ela sentia isso e por isso me abraçou. Ela sabe da urgência das minhas vontades e sabe que sofro com isso. Sei que Deus é divino e toda a sua obra, e chego a achar que ele permite que as mãos das mães também sejam divinas, assim como o coração infinito que elas têm, de quem pode amar sempre mais um filho, da mesma maneira. Há um quê de divindade nas mãos da minha mãe. E no meio de toda a bagunça multisocial e das sacolas, e das bolsas e o saco de ração, dos planos e da esperança, no meio das comprinhas eventuais, no meio daquele ônibus, daquele barulho do mundo, dos tumultos internos, e das vidas alheias, mais o meu medo do fracasso, eu me senti em paz, mesmo no caos das minhas dúvidas. O fato é que tenho saudade da minha mãe… muito antes de ter nascido.

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