segunda-feira, 15 de agosto de 2011

da dívida que tenho para com a família

Não é nada financeiro - nada que tenha juros e correção monetária. Nada que diga respeito à suposta aliança entre os membros da família. Talvez se trate apenas de mais um empréstimo de paciência. O fato é que se não fosse a ausência diária, o olhar avesso nos corredores da casa, o momento em que se passa o sal na mesa, a ligação não atendida e a mão que segura o controle; se não fosse a conversa interrupta na hora da novela, o cochicho e o sorriso amarelo, a teia de aranha no canto da parede, a escova de dente solta na pia do banheiro; se não fossem os cabelos no chão e no pente, as capas organizadamente guardadas na gaveta do rack - de livros que não sabemos onde estão; se não fosse a impressora quebrada no guarda-roupa, a mala antiga e o casamento que não fomos; se não fosse, no exato momento, a mentira necessária, o berro e a vontade de moral - de sermos todos respeitados na vila, de não sermos palavras chulas na boca dos peões de fábrica e dos coronéis - ratos de farda; e se não fosse o palpite tenaz, o castigo da infância, o óleo de fígado de bacalhau em vez de do Biotônico Fontoura; se não fosse apenas uma mochila de rodinhas ao invés de duas, se não fosse a maneira displicente de de lamber o prato - e de tomar a última gota do suco de cenoura e laranja feito na hora do almoço de dias monetariamente mais alegres; e se não fosse o cochilo no sofá e todas as paredes brancas da casa -que não podem nunca ser pintadas de outras cores, e se não fossem todas as normas de horários e obrigações - quase nunca cumpridas antes do segundo expediente, devido à ausência ameaçadora das mãos pesadas; se não fossem as risadas e os choros situações muito próximas; se não fosse tudo isso e mais algumas coisas que me recuso a citar, por achar que são pessoalíssimas e peculiares, a minha casa - não havendo mais quem a intitulasse lar - simplesmente desmoronaria.




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ps: este texto é uma intertextualidade com o referenciado abaixo:



CASTRO, Marcílio França. Da Dívida que Temos para com os Cães. Folha de São Paulo, Sao Paulo, 17 jul. 2011. Caderno Ilustríssima, p. 8.

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